segunda-feira, março 17, 2008

Domingo nublado

Em pleno domingo, três amigas saem para fazer uma videoreportagem, para a matéria de telejornalismo. Munidas de câmera, fitas, tripé, luz, baterias, microfone, cubo com o logo do telejornal da faculdade, extensões e mais uma porrada de coisa tinham tudo para passarem momentos divertidos e marcantes, como de fato aconteceu. A pauta era sobre um bairro da cidade de Santo André, no Abc paulista, que está sofrendo com a poluição causada pelo Pólo Petroquímico localizado nas redondezas.

Detalhes à parte, tudo ia muito bem até o meio da tarde, após terminarem de gravar na casa da Dona Cida. Até pastel na feira da região já haviam comido. Decidiram então ir mais para perto do Pólo, para ver se conseguiam alguma outra fonte mais prejudicada ainda e que pudesse dar boas declarações e imagens. No meio do caminho, em uma avenida margeada por fábricas cujas chaminés despejavam quantidades enormes de fumaça, um delas ligou a câmera e começou a fazer imagens das indústrias.

As garotas conversavam animadamente, quando pouco mais a frente uma movimentação estranha chamou atenção: um Opala verde e um Uno estavam discutindo. Tá, você entendeu, não eram bem os carros que discutiam, mas seus integrantes, que usavam o carro como artíficio para intimidar uns aos outros.
A motorista loira gritou: Olhaaaa, eles tão brigando! Grava Di!
A Di foi virando a câmera pra a frente, tentando capturar os dois carros, mas a loira e a amiga do banco de trás disseram que estavam brincando, que ela devia continuar a gravar as indústrias. A câmera voltou para o seu lugar, porém os olhos das três estavam nos dois carros da frente.
A loira, proprietária de um Uno, ainda brincou: "Uno! Uno! Uno! Vaaaai Uno!".

O motorista do Opala (ou algum passageiro) abriu a porta do carro e ameçou descer, mas o semáforo abriu e tudo bem, os carros saíram. Alguns segundos depois, tudo parecia bem e estabilizado.

Na faculdade, sempre ouvimos os professores dizerem que somos urubus, ou pelo menos deveríamos ser. Devemos torcer para que tragédias aconteçam e junto com elas consigamos as notícias de cada dia. Sabemos também o quão difícil é conseguir uma pauta que deslanche bem e seja do gosto dos professores, por isso, sempre que saímos juntas para algum trabalho, brincamos de transformar qualquer coisa que aconteça na nossa frente em notícia: "Homem de meia idade usa shorts ridíiiiiculo em Santo André", "Nova loira do Tchan é encontrada na feira", "Pastel com catupiry faz alegria dos jornalistas". Brincamos inclusive "matando" a nós mesmas, ou forjando acidentes:

Amanda: Di, saí da rua, eu não quero que você seja atropelada com a câmera na mão.
Di: Ah, pelo menos íamos ter notícia. Vai, vou jogar vocês duas na frente do carro e me preparar pra gravar tudo!

Naquele dia, as três meninas fizeram inúmeras piadinhas do tipo. E logo depois em que tudo parecia calmo em relação à briga dos carros, a motorista loira soltou: Droga, podia ter tido morte.

Um milésimo de segundo depois, saindo do farol, o Opala fazia o Uno capotar um pouco mais à frente do carro das meninas. Droga, aquilo não podia estar acontecendo. (Pega isso, Di! Grava!)
(Liga pra polícia, ambulância, bombeiros! Pega o celular!).

Foi assim, em pleno domingo à tarde, que vi uma pessoa morrer à toa. Em uma briga infeliz de trânsito. Uma família ficou esperando o motorista do Uno que não voltava e o motorista do Opala foi embora, dormir um sono que ele não merecia.

Não vi quantas pessoas haviam dentro de cada um dos carros, mas vi o motorista do Uno, de cabeça para baixo, com o sangue pingando no chão, enquanto parávamos o carro mais à frente e ligávamos para a emergência. Vi a mesma coisa também quando voltei a fita para ver se naquela brincadeira tinha gravado a placa do Opala. Vi pessoas se aglomerando em volta do acidente, tocando no corpo e gritei para o nada que o corpo não devia ser tocado. Vi que seres-humanos são como urubus. Vi tanta coisa que não queria ter visto e continuo vendo, desde então.

Meu corpo já parou de tremer, mas meu cérebro continua me mostrando as imagens seja enquanto tento dormir, seja no meio do sono, seja quando acordo. A vontade de vomitar, o nó no estômago, a sensação indefinida continua em mim. E eu, sempre tão tranqüila, me vejo com medo.

Saber que o motorista do Opala foi embora e está solto por aí me revira o estômago.
E a dúvida sobre o que fazer com aquela fita não me deixa em paz.
Hoje estou de luto. Luto por alguém que não conhecia. Luto pelas milhares de vítimas de acidentes ou assassinatos estúpidos como esse. Luto por saber que isso acontece o tempo todo. Luto por alguém que perdeu um filho. Por um filho que perdeu um pai. Luto por saber que alguém fez aquilo e nem sequer parou para ajudar. Luto por um domingo a tarde tranqüilo, que acabou mal. Muito mal.